domingo, 26 de abril de 2009

HELL F FRACTURE

Gostaria de ter voltado a escrever anteriormente mas, a correria da rotina intensa que vivo, aliada a um desejo pavoroso de dar conta de tudo impediram-me de persistir no planejamento de escrever um blog interessante. Trata-se de uma vontade maluca (disso eu entendo! rs) de trabalhar o máximo que puder, estudar e principalmente treinar, sendo que sem esta última necessidade, provavelmente seria impossível lidar com os contratempos rotineiros.
Assim, retomo o gosto pela escrita devido ao repouso forçada, impetuoso e entediante. Agora, neste minuto, enquanto escrevo, começo a me dar conta de várias vantagens que a fratura que me trouxe. Sim, esta é a razão responsável pelo meu retorno ao blog: repouso obrigatório e consequentemente, disponibilidade de tempo para escrever livremente, sem ter a preocupação se estou agradando ao outro ou não.
Interessante como escrever no blog pode associar-se á psicanálise, não? Vou guardar o tema para uma próxima postagem.
Aconteceu no dia 19 de abril de 2009, quando estava passando um feriado com meus pais, recém chegados da Europa. Estava muito feliz por  estar com eles e muito em dúvida sobre o que faria no seguimento do feriado. Pensei exaustivas vezes se iria para Ubatuba ou se iria participar de uma corrida de aventura, promovida por um amigo querido. Por outro lado, também havia um amigo querido me convidando para surfar. Ele surfa e eu tento. Existe algo mais angustiante do que não saber o que queremos? Penso que não. Diga-se de passagem que, por culpa, oops (ato falho), devido ás mudanças de planos de um outro amigo, mais querido ainda é que eu estava com tanta dúvida.
Certa vez, ouvi de uma pessoa amiga que, quando sentimos muita dúvida, devemos tomar uma decisão antes de adormecer e no dia seguinte, prestar atenção ao primeiro sentimento que nos toma pela manhã. Se nos sentirmos bem, provavelmente, tomamos a decisão certa mas, se formos tomados de sufocante angústia ou até mesmo um desconforto pré-cordial, significa que tomamos a decisão errada.
No sábado á noite, tomei a decisão de ir cedo, no domingo, para Ubatuba. Acordei com uma sensação indiferente: nem tranquilidade, tampouco desconforto.Olhei no espelho e o meu umbigo estava ligeiramente mais atoladinho do que o de costume. Casa da mãe, guloseimas... difícil manter o padrão ouro...preciso pedalar!!! (sei que algumas pessoas vão sentir náuseas ao ler isto mas, é um comprometimento para mim ser sincera neste blog). Conferi o email, através do celular e havia uma mensagem insistente do amigo organizador de eventos, fazendo um convite, no mínimo suficientemente sedutor para que eu me esforçasse e fosse para a corrida.
Aprontei-me mais do que rapidamente, peguei a bike recém-tirada do carro, não conferi os ajustes rotineiros e saí pedalando em direção ao shopping, onde encontraria com a turma da Gamaia.
Chegando lá, fui tomada por um intenso bem-estar, encontrando amigos de pedalada, os quais não via há algum tempo. Tive uma sensação de satisfação quando pensei que estava feliz por estar lá e porque iria para Ubatuba á tarde, onde encontraria outras pessoas que esperavam por mim. Combinamos de sair em ritmo de passeio até um certo ponto, onde nos separaríamos para iniciar a corrida. No caminho, notei alguém pedalando sempre ao meu lado e conversando animadamente, fazendo várias perguntas sobre a minha vida, meus planos... enfim, alguém que estava realmente interessado pela minha história. Ainda no ritmo de passeio, fomos conversando, enquanto eu pensava que engraçada era aquela situação e que, em 10 ou 15 minutos de pedal, eu havia recebido mais atenção desta pessoa do que em 1 ano que eu passei gostando dele!!! Ah! Como a vida é curiosa! Este cara foi o segundo menino que eu havia beijado na vida e eu passei 1 ano inteiro sonhando com o dia que nos beijaríamos  na boca, de novo. Foi inevitável  fazer este balanço de ter obtido mais atenção em 15 minutos do que dos 12 aos 13 anos!
Começou a corrida e só haviam 3 mulheres. Fomos informadas de que haveria premiação e podium para as 3 primeiras vencedoras. Isso mesmo. Já tínhamos nosso lugar garantido o podium e então, deixamos os rapazes entrarem na luta pela sobrevivência e começamos a pedalar em ritmo moderado, discutindo as relações em que cada uma estava envolvida. Existe mulher que não gosta disso? Duvido. Elas estava animadas, afinal, não é todo dia que se participa de competição de aventura com psicoterapia on bike. Depois de discutirmos vários pontos em comuns, de nos identificarmos e nos certificarmos de que não éramos loucas, que acontece com todo mundo... resolvemos acelerar o pedal. Deveríamos ter discutido mais e o pior é que eu fui a idealizadora da idéia de pararmos de falar e pedalar mais. Mal sabia o que aconteceria comigo 5 minutos depois.
Antes de entrar na estrada, dei uma freada brusca para esperar um carro passar e sentir uma certa instabilidade. Com a pressão, minha garrafinha saiu um pouco da posição mas, naquele momento, eu não havia percebido. Logo em seguida, quando assumi mais velocidade, a garrafinha caiu e freei usando freios dianteiros e traseiros. A bike derrapou, percebi uma instabilidade na roda mas, nem imaginei que estivesse solta. Fui arremessada a cerca de uns 80 metros da bicicleta. Na queda, mil passagens percorreram a minha mente, inclusive o episódio do cachorro no adventure camp, em que achei que  aquele serio o fim. Tentei preservar a cabeça e tentei varrer a imagem de mim em coma no hospital. Consegui rolar um pouco, proteger a cabeça mas, o meu primeiro contato físico com o chão se fez com a minha mão direita em intensa flexão, sustentando todo o peso dos meus 53 kg em pirueta.. Gritei para chamar a atenção das amigas que pedalavam logo á frente. Elas voltaram e foram absolutamente solícitas, como é importante isso na hora da dor! Levantei com dificuldade, pensei em como doía!! mesmo assim, considerando o aquecimento do meu corpo, a adrenalização da queda, o conceito de que dor não é um sinal de que algo vai mal mas sim de fraqueza (completamente deturpado, admito) e a sede de superação que corre pelas minhas artérias (é uma sede muito oxigenada, não poderia dizer veias) subi na bike e pedalei, com dor, mais 6 km. Como estava no plano, pensei que estava tudo bem e a dor era esperada. Ao avistar a subida na frente, iria reduzir a marcha, se pudesse. No entanto, não havia nenhuma força no polegar direito que pudesse me ajudar a realizar a manobra. Paresia total. Agora eu entendo as mães que chegam ao meu consultório e suplicam por ajuda dizendo que os filhos não a obedecem, referindo intensa frustração por exigir, mandar, pedir e não terem nenhuma resposta. Eu olhei para o meu polegar direito e implorei para ele apertar a marcha e permitir que eu continuasse na corrida de aventura. Naquele momento, a atitude arresponsiva do meu dedão significava muito mais do que só sair da corrida. A indiferença deste primeiro quirodactilo dedão era como ele era chamado quando ainda éramos brothers) formou uma trama de significados na minha mente que se constituía em todas as perdas que eu teria por causa desta queda: possibilidade de fratura, sair da corrida, ir ao hospital, perder o feriado, COMPROMETER O MEU TRABALHO, O MEU TREINO, prejuízo financeiro... como se vive sem usar a mão direita???
Tive sorte porque o carro de apoio vinha logo atrás e pedi ajuda. Ao tirar a luva, percebi um edema gigantesco na articulação radio-carpal, impossível de dizer que não havia fratura mas, a esperança é um sintoma doentio para mim  e ainda assim, queria acreditar que era só uma luxação, contusão... qualquer lesão com menos prejuízos. O amigo do apoio foi pedalar na minha bicicleta e ficou impressionada por que no momento em que subiu na bike, disse que a roda estava ainda solta! Entrei no carro e fui providenciar ajuda para ir ao hospital radiografar. No caminho, a ansiedade era tanta, quase proporcional a dor, que aumentava latejantemente, que telefonei para um casal de grandes amigos (como é bom ter amigos!) e detalhei o ocorrido. Ele é ortopedista e não quis me assustar, orientando o hospital que eu deveria ir e, possivelmente, seria só uma contusão.
Minha mãe veio me buscar, avisei aos amigos, todos preocupados, seguimos ao hospital. Minha mãe só deu partida depois de dar uma conferida no meu corpo inteiro pois, ela sabe eu engulo a dor e queria certificar-se de que era só o membro superior direito que estava ferido, além de 3 hematomas no membro inferior direito (Freud interpretaria esta minha insistência por atribuir "membro" ás partes do meu corpo).
Foi com muita paciência e dor que aguardei o atendimento e isso me fez pensar muito em como meus pacientes do plantão sentem-se quando esperam por mim. Senti vontade de ser uma médica melhor na próxima oportunidade de plantão, que parecia distante daquele momento.
A demora para abrir a ficha de atendimento inicial estava tão lenta que precisei de um pouco de arrogãncia para obter o efeito desejado: "Com licença, eu não quero consultar com o clínico, posso eu mesma fazer o meu pedido de radiografia? Sou médica e tenho quase certeza de que tenho uma fratura há 2 horas e a dor está insuportável."
Bom para mim, ruim  para a justiça. Um sorriso mágico abriu-se nos lábios da auxiliar de enfermagem que fazia a triagem e ela me conduziu ao clínico de plantão, sem ficha.  Ele perguntou o qe havia ocorrido, solicitou o Raio X e eu o reconheci como pai de uma colega que havia  estudado comigo no colegial. Então, ele me contou sobre a filha, que havia feito jornalismo e desistido: está agora no terceiro ano de medicina. Pensei em como eu estaria hoje se não tivesse desistido do Jornalismo e feito Medicina.
Nas duas primeiras incidências não foi possível ver a fratura. Não satisfeito, o pai da minha amiga solicitou a incidência oblíqua. Estava quase ouvindo os sinos quando ele disse: "Aqui está a fratura!!!". Que beleza- pensei inspirando fundo  e pressionando as arcadas dentárias.
Ele prescreveu um antiinflamatório EV para aliviar a do até que o ortopedista, que estava de plantão á distância, chegasse. A desorganização do hospital, o melhorzinho da cidade, era tanta, que ninguém vinha me medicar. Reclamei, ataquei, chorei. Fugi da salinha de medicação, que deveria chamar "sala de iatrogenia raivosa".
Fui respirar um pouco lá fora.  Pensei em quando estava praticando snowboard no Chile, sofri uma queda e imaginei que catástrofe seria fraturar a mão/braço direitos. Naquela situação, o cóccix e a costela não me causaram nenhum dano maior. Como vai ser? Eu vivi sozinha, sou absolutamente responsável pela minha vida, minhas contas, meus pacientes. Que tragédia! Uma tênue corrente de pensamento passou: "Eu sou muito importante, não posso adoecer!" De certa forma, provocou uma analgesia. Acho que todos os médicos sentem isso, em algum momento. Por outro lado, eu gostaria de poder tirar uma licença do tempo exigido para a cura do meu corpo. Impossível.
O ortopedista era um senhor que tratou da perna do meu pai, que ele fraturou jogando futebol.
Confirmou a fratura e com a calma que só um septagenário tem,  conduziu a consulta de pronto-socorro em mais de 30 minutos. Ainda bem que eu era a única fraturada no momento
Enquanto preenchia a receita e o meu atestado, foi conversando sobre um paciente psiquiátrico que ele havia visto na faculdade. Contou com calma e satisfação, achando muito interessante descrever para mim os sintomas maníacos. Ele foi simpático e empático mas, por que não conversar e preencher tudo ao mesmo tempo? (que angústia!). Fomos interrompidos pela cirurgiã que relatou um caso rápido em que ele precisaria entrar na cirurgia para fazer um enxerto de dedo. Fomos para a sala de gesso e ele mesmo começou a arte, sem fazer redução. Disse que não seria necessária. Enquanto me engessava, ia descrevendo, com aquela notória calma, como ele faria o enxerto do próximo paciente.  "Aham (são agora quase 5 horas de dor. Se estivesse grávida, tentaria o parto normal, acho que eu aguento)".
Finalmente, recebi alta e o mágico antinflamatório EV tanto aguardado. A dor melhorou e meus pais me aguardavam na recepção (Sou muito amada! Graças a Deus!).
Em casa, fizemos planos de como seguiria e organizaria minha rotina. Minha mãe, uma pessoa excepcional, dispôs-se a voltar para São Paulo comigo, full time, para realizar todas as atividades da vida diária, dirigir até os meus empregos e escrever tudo durante as consultas. O único trabalho que seria demais pedir para ela seria o plantão de 24h, o qual eu organizaria de outra forma, por enquanto.
Comecei a sentir muita dor, falta de posição de conforto e tédio enorme só de pensar no maldito e necessário repouso.
Alguém que me aguardava na praia, também médico, telefonou para saber do meu atraso e, quando falei da dor, já me orientou matar logo de peito e tomar Tylex de 30mg. Deliciosos. 
Impossível escrever, difícil achar uma posição para dormir, regressão á primitividade comendo salada  com a mão esquerda, voltando á infância com a minha mãe me banhando (pedi para o meu pai, em tom de brincadeira, claro, e ele perguntou se eu estava louca, difícil limpar após o banheiro, colocar OB então... nem se fala, escovar os dentes fazendo movimentos circulares com a esquerda, teclar mensagens no celular com a esquerda...
É aqui que entra a NEUROPLASTICIDADE! A compulsoriedade em exigir ações do membro não-dominante! A idéia de que estou desenvolvendo mais o outro lado do meu cérebro é, por si só, excitante!
Após 1 semana do acidente, posso dizer que pensei muito nos meus pecados, no que quero fazer para me tornar uma pessoa melhor, em como valorizar os amigos, nos mecanismos de resolução de problemas que disponho, na minhas habilidades recém-desenvolvidas de abrir uma lata de atum com o pé, escovar os dentes tomar banho sozinha, lavar os cabelos, secar e passar chapinha com a mão esquerda, comer comida japonesa segurando o hashi coma esquerda... uma lista imensa de conquistas! Se eu buscava superação, acredito que Deus está conspirando a meu favor.
Além das novas sinapses, muitos outros acontecimentos e sensações não menos especiais do que mágicos vem enchendo o meu dia de significado.
Eu sei bem o que eu quero: "Fighting for meaning".

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